Já repararam como vai estar amanhã? (Viagem à memória a passar-se...)

Já repararam o que vai haver no céu amanhã?

Scorchio!!

Well, I'm in love with a weather girl
She brings sunshine into my world
I expect I won't have to cry
She's dropping clouds out of the sky...

"Weather Girl", Repórter Estrábico(CD Eurovisão, 2004)

A menina da meteorologia...

Quando apareceu a sociedadeindependentedecomunicação, o terceiro canal da têvê que não tardou a transformar numa realidade mais grosseira a epistolar canção dos Táxi ("TVWC" é o nome), havia meninas a apresentar o boletim meteorológico.

Davam a cara. Uma delas era a Cristina Möller (engraçadita, até, a moçoila...).

Depois, pouco tempo depois, surgiu uma televisão muito pouco católica (e nós com isso!...) onde pudemos aprender a pensar no que é ou deveria ser um boletim meteorológico. Era apresentado pelo amigo açoriano Anthímio de Azevedo e nele se mostravam imagens de satélite, com as nuvens sobre o escuro e uns pontinhos com cruzes que delimitavam ou apontavam o território nacional.

E ele explicava, com palavras e gestos, o que se ia passar, ou o que já tinha passado e acontecido e percebíamos bem melhor os habituais fenómenos atmosféricos pelos quais vamos regendo as nossas vidas e as nossas paupérrimas conversas com os conhecidos transeuntes que insistimos em desconhecer.

(Não muito mais tarde, o amigo açoriano dava a cara a uma conhecida marca de tintas, dizendo que eram boas para resistir à agressividade das chuvas químicas das cidades... ou seja, num simples anúncio ficávamos a pensar no porquê de as chuvas, nas cidades, serem agressivas...)

Na RTP, por essas alturas (meados de noventa, acho) lembro-me bem (porque se há coisas que ficam, também há coisas que queremos que fiquem), usaram dois temas do "Antarctica", do Vangelis, nomeadamente este e este, como som de fundo. Apenas uma voz ouvíamos falar e víamos uns quadros electrónicos com o tipo de céu que se previa. Vangelis, deixem-me dizê-lo, que sempre o vi como uma espécie de filósofo, ou então, mais correctamente dizendo, um psicólogo que perscruta a nossa mente e lhe reconhece as faltas. E também a estreita ligação à natureza de que parecem brotar muitas das melodias que compôs. Daí que a música encaixava muitíssimo bem.

Impressionante e marcante, e penso que arredado ficou dos boletins (e talvez não merecesse), foi o tema que se segue... (reparem quão entranhado está na memória de alguns... já lá vão uns bons anitos que isto foi registado...1977...):




Oxygene, Jean Michel Jarre


Observar a natureza faz pensar.

Já - na maior parte dos casos - observar as montras das lojas faz deixar de pensar... Já repararam?

Dantes davam os filmes que iam passar nos cinemas do país (ajudou-me a aprender a palavra "Nimas"...). Era uma longa lista que passava, de baixo pra cima, antes do jornal da noite. Antes de este ter sido transformado no veneno nosso de cada dia.

Dantes davam desenhos animados depois do dito jornal da noite. E ríamos com o Babalú, ou com a Tartaruga Touché ("En garde!...").

Dantes, mais pra trás no tempo, para preencher aquele bocadinho de tempo que faltava até começar tal programa, davam videoclips, sim, assim, soltos, de músicas. Lembro-me tanto da "Canção dos Sapos" (como lhe chamava; ou "We All Stand Together"), do McCartney (o McCartney sempre transportou aquele ar infantil que os Beatles tinham...) ou de algumas do então tão popular e sempre grande Júlio Pereira (como a "Celtibera"...) ou do Rão Kyao...

Já repararam como todas estas pausas para respirar foram suprimidas?...

Tempo passou a ser oportunidade de negócio.
E o Espaço, idem, aspas.
E o espaço/tempo televisivo era o cobiçado alvo dos tantos ossos a um cão. Que eras tu. Raivoso ou amestrado.

E tal como deixamos de ter tempos livres quando os usamos (por exemplo a pensar ou a preparar o trabalho), os vazios deixaram de existir: passaram a estar ocupados... com o VAZIO da publicidade interminável e omnipresente.

Porque a dada altura, alguém deverá ter considerado que as imagens de satélite eram demasiado complicadas de entender.

Mas isso foi já depois de terem retirado os meteorologistas do ecrã. (De facto, assim torna-se mesmo mais difícil...!) Ou seja, foi retirada a linguagem gestual, a expressão facial, e ficou só a voz. Ficámos sem saber quem falava.

Depois, - como ia a dizer - retiraram-nos as imagens de satélite e reduziram-nas a símbolos: nuvens com gotas a cair, escuras ou brancas, com um sol atrás delas, ou um sol com os raios a pingar, rectos.

Depois - tal como os telejornais importaram a tabloidização do Mirror ou do Sunday anglófonos e puseram os hiper-resumos a passar em rodapé (e acháveis mesmo que iam interromper as outras notícias para "apanhares" e "pensares" neles?!?...) - o estado do tempo passou a ser a cauda a abanar dos telejornais e tornou-se despiciendo haver um programa chamado "Boletim Meteorológico". E os símbolos caracterizadores do estado passaram a descurar as diferenças entre céu muito nublado e céu algo nublado...

Quase em suma...
... já repararam como este processo de empobrecimento da comunicação sobre um tema tão comum e comezinho (do dia-a-dia) foi acompanhando (e estimulando) a pauperização da reflexão?

Ignorar as causas das coisas é perdermos o material do pensamento. Até ao ponto em que não conseguirás pensar em nada sobre um assunto: faltam-te dados.

Sem futuro nem passado

Não se pode aferir
se nos estão a mentir
Se há mesmo novidade,
ou se é truque do mercado.
Não sabendo a verdade
do problema colocado
não se pode definir
a estratégia a seguir"

"O Fim da História", Mão Morta

O Novo Acordo Ortográfico (NAO) vai, em demasiados aspectos, neste mesmo sentido: suprime consoantes que fazem com que certas vogais sejam lidas abertas (e por isso é que dizemos as palavras como as dizemos...) e consoantes que nos fazem questionar o lá estarem (por causa da etimologia, isto é, faz-nos pensar na evolução da linguagem e na sua história...; e por causa da regra acima descrita)...

[Por conseguinte, lermos como abertas vogais que não são acentuadas é desrespeitarmos o NAO; do mesmo modo que lermos como fechadas vogais que deixaram de ser abertas pelas consoantes, suprimidas, é ridicularizarmos ainda mais o absurdo e o desmiolamento do NAO.]

Já repararam como o panorama está mais vazio de ideias e mais preenchido de porcarias e lixo e vozearias que nos levam sempre para a peçonhenta fossa dos jargões e linguajares económicos (e da escola de Chicago)?

(O NAO, como uma manifestação mais da vileza do tempo e da perfídia dos seus instituidores e líderes não eleitos, não podia deixar de acompanhar este processo de simplificação e reducionismo...).

Já repararam como estamos a perder muito mais facilmente a memória?

Já repararam como estamos a perder as raízes ao que nos dá sentido, ao contexto de sermos elementos vivos daqui e de agora?

Já repararam que os peixes mortos são levados pela corrente?

Já repararam que continuamos a cometer os mesmos erros depois de sabermos as consequências indesejáveis?

Estamos cada vez mais distanciados do que fazemos, do que sofremos, sofrendo sem cessar, abortando assim formas de saber o que fazemos e de perceber as relações entre umas coisas e as outras.

Grandes e divididos, perdidos da noção do conjunto, sem projectos comuns, ignoramos a magnitude acumulada das pequenas acções.

Já repararam como continuam "sem cometer crime (e ser presos) os que abatem árvores e reduzem a terra a areia"?

One more tree will fall how strong the growing vine.

Turn the earth to sand and still commit no crime.
How one thought will live provide the others die.

(One More Time To Live, Moody Blues, 1971)

Já repararam como o empobrecimento da linguagem empobrece o ser humano?

Já repararam como o afunilamento das visões esvazia a arte e aniquila a vida?
Já reparamos como vivemos sozinhos nas cidades?
Já repararam que a nossa memória de amanhã estará reduzida à miséria que estamos a praticar hoje?

Já repararam que Braga é das cidades com maiores amplitudes térmicas em Portugal? Porque será?

O que é a qualidade de vida, de habitação, de práticas quotidianas, de bem-estar mental e corporal?

O que é o acesso à luz solar e a espaços onde se pode respirar...?
Onde é que eu tenho o direito de não consumir?
O primeiro estudo climático aplicado ordenamento urbano (as coisas começam a religar-se...) tem na Figueira da Foz um exemplo a seguir.
Ler notícia no CiênciaHoje.

Pois...!

....Tragam essas análises para Braga!
Mas para ter consequências práticas!
Se não for para mudar alguma coisa - e quer-se para melhor -, a tão simples e senso-comunal observação desta cidade tem tanta validade como os estudos dos académicos...

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